sexta-feira, 23 de julho de 2010

Physis(1) como ápice da noção de natureza

Desde os primórdios da civilização, o homem vive uma necessidade interior de saber o seu papel no contexto do planeta Terra e de conhecer a origem das coisas e seres que o cerca. A partir do século VI a.C. com o surgimento da Filosofia na Grécia Antiga(2), a busca por respostas começou a ser sistematizada, constituindo-se na base do pensar e viver da civilização ocidental. Passou-se a construir uma explicação racional e sistemática das características do universo (cosmologia) em substituição à explicação sobre a origem do universo baseada em mitos (cosmogonia). O objetivo principal era buscar o princípio absoluto (primeiro e último) de tudo o que existe, perene e permanentemente.
Os filósofos originários, também conhecidos vulgarmente como pré-socráticos, particularmente, Heráclito(3) e Parmênides(4), discutiram a questão da Physis, que tem como uma de suas muitas traduções incompletas a palavra natureza. Uma característica dos filósofos originários é a discussão sobre a Physis confrontando o “ser e o não ser”, ou seja, os contrários. Os pensadores do período inaugural perscrutam a gênese do cosmos, a forma da Terra, o movimento dos astros, os ciclos meteorológicos, a origem da vida, o alcance do pensamento. Não aceitam as respostas prontas, tradicionais, e, sim, olhando em torno - com um olhar penetrante, capaz de atravessar todas as distâncias - proferem suas conjecturas de longo alcance. Contra as superstições e crenças estabelecidas, contra um antigo saber já consagrado, preferiram o enfrentamento direto com o mistério envolvente, tentando - numa luta de luz e sobra - decifrar os enigmas do nascimento e da morte, dos céus e da Terra. Aos pensadores deste período inaugural o Ser se revelou como Physis, palavra grega cuja força se perdeu nas traduções. Os romanos traduziram-na por natura. Mas a palavra Natureza, proveniente do Latim, só se aproxima do sentido de Physis se não mantivermos a oposição usual entre natural e artificial, entre natural e cultural, pois os gregos viam a Physis como o domínio de todos os domínios. Fonte e origem (Arché(5)), é dela que nascem, crescem e vivem todas as coisas, num emergir constante. Ela é o vigor originário do qual surgem os homens e os deuses, as plantas e os animais, os templos, os navios e as artes. Eterna e sempre jovem, divina, a Physis é o poder mais alto.

Se a Physis é o domínio de todos os domínios, o Logos(6) é também da Physis. Sendo ela o perene emergir, como um clarão que nunca se apaga, o Logos deve estar no centro mesmo deste brilhar, e o Logos humano deve auscultar, receptivo, a sua voz e fazê-la florescer em palavras.

Se a Natureza - no sentido divino e abrangente do momento inaugural - é para os primeiros gregos o Ser dos entes que vêm à existência, se é o permanente emergir, é preciso que os humanos, de olhos acesos e de alma seca e brilhante (pois a alma de brilho seco é a mais sábia... [118]) saibam cantar em obras o clarão da verdade, em templos e estátuas de mármore, e na palavra dos pensadores. Os entes só têm o sentido que apresentam (esse mar, esse sol, nossa polis, os deuses e os heróis) porque um mundo foi instaurado e cada coisa brilhou em seu lugar.

Já ao tempo de Platão(7), a filosofia começava a dividir-se em vários campos: Physis, Logos, ethos. É a Platão que se deve a divisão entre os mundos sensível e inteligível, sendo afirmada a preeminência do Mundo das Idéias. Aristóteles, por sua vez, dividiu os entes em dois tipos: entes físicos (a terra, os astros, os vegetais, os animais e, em certo sentido, o homem) e entes técnicos (produzidos pela arte, pela perícia humana). Quando, pois, Aristóteles(8) chama os primeiros pensadores de físicos ou fisiólogos, já obscurece suas posições, já os enquadra em parâmetros que impedem sua compreensão autêntica. A designação de fisiólogos no vocabulário aristotélico, em que Physis tem menor abrangência, reduz indevidamente o âmbito do questionamento originário.

A partir de então, há um predomínio secular da racionalidade platônico-aristotélica, consagrada pelas duas grandes correntes do pensamento cristão: a de Agostinho e a de Tomas de Aquino, eclipsando a visão originária de mundo, pois a tese central de Heráclito, como exemplo de um pensador originário, não é o mobilismo levando a um completo ceticismo, mas sim, como um Logos gerindo e captando, vendo e dizendo os modos e os ciclos das transformações. Assim, caíram no esquecimento o sentido de fundamentais palavras do período inaugural: Physis, Logos, aletheia(9) … Perdeu-se a postura mesma dos questionamentos dos pensadores originários, e os caminhos por eles abertos, se fecharam, ou melhor, se velaram.

Pode se dizer que com Platão/Aristóteles a filosofia enquanto probabilidade do pensar da Physis se extingue reduzindo a força da multiplicidade presente em ambas as definições. Ao separar a grandiosidade da Physis, a tradição filosófica perde o que há de melhor na filosofia que é a visão do todo única do período originário do pensamento ocidental. Tal separatividade funda a era da lógica em detrimento do Logos, para Heráclito, segundo Carneiro Leão:

“(...) a realidade não é lógica, é Logos. É tanto cósmica como caótica, mas não é lógica. Que diferença se dá entre Logos e lógica? A maneira mais direta e simples de se responder é compreender numa experiência que a lógica é uma doutrina sobre o pensamento, é uma teoria do que é a verdade, é uma disciplina das relações, enquanto o Logos é o próprio pensamento, é a própria verdade, é o próprio relacionamento.”(10)

Fica clara a diferença entre o pensamento originário grego, dentro de seu contexto histórico-cultural com a sociedade contemporânea. Isto nos faz perguntar sobre os rumos dados pela humanidade a questão da natureza e o contexto em que a humanidade se encontra. Os gregos nos ensinam a unir e reunir, a pensar a verdade e o ser. Já a contemporaneidade com seu consumismo desenfreado e a falsa noção de utilitarismo tem esgotado os meios puramente naturais. Pensar em ser e reunião na sociedade contemporânea, segundo Carneiro Leão:
“(...) carece de funcionalidade da sociedade descartável de consumo. Pois o ser e a verdade não interessam à funcionalidade. O que interessa não são as coisas e as pessoas em constante transformação. São as funções. O indispensável é que tudo funcione.” (11)
Deste modo a sociedade ocidental, bem como a filosofia que acompanha sua história, mergulhou no tecnicismo lógico e na estreiteza do pensamento meramente racional em detrimento do pensamento originário dos gregos antigos. A razão só aceita a si mesmo, é excludente ao contrário do pensamento originário que tudo abarca, reúne, une, é a perfeita manifestação do Logos na Physis.

Assim vislumbramos um futuro sombrio para o conjunto homem/natureza, lembrando que esta dicotomia pertence à modernidade (Dicotomia inexistente para os gregos antigos), onde a exploração desenfreada dos recursos naturais com mero intuito consumista, com pouca ou nenhuma preocupação com a ordinária harmonia do cosmos, bem como uma clara apologia do ter, leva o homem cada vez mais ao automatismo individualista, onde cada sujeito dentro da sociedade não é mais que mero expectador do fim do mundo, sempre ansioso por nada. Aprendamos com os gregos a viver em harmonia com o cosmos, trabalhando e pensando em conformidade com ele. Não sejamos senhores irresponsáveis do mundo, mas sim co-autores desta grande obra do Logos que é o universo Physis.

Referências
(1) Physis (φύσις). Tem sido traduzida por natureza, mas seu significado é mais amplo. Refere-se também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve, o fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna. Nesse sentido, a palavra significa gênese, origem, manifestação.

(2) Tales nasceu em Mileto, antiga colônia grega, na Ásia Menor, atual Turquia, por volta de 624 ou 625 a.C. e faleceu aproximadamente em 556 ou 558 a.C. . É considerado o primeiro filósofo.

(3) Heráclito, nasceu em Éfeso (Aprox. 540 a.C. - 470 a.C.) foi um filósofo pré-socrático que recebeu o cognome de "pai da dialética". e a alcunha de "Obscuro", pois desprezava a plebe, recusou-se a participar da política (que era essencial aos gregos), e tinha também desprezo pelos poetas, filósofos e pela religião.

(4) Parmênides, nasceu em Eléia (cerca de 530 a.C. - 460 a.C.). Foi o fundador da escola eleática.

(5) Arché (ἀρχή). princípio que deveria estar presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo. Princípio pelo qual tudo vem a ser. É a origem, mas não como algo que ficou no passado e sim como aquilo que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente.

(6) Logos (λόγος). no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada -- o Verbo. Mas a partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Já com Platão, Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da ordem e da Beleza.

(7) Platão nasceu em Atenas, provavelmente em 427 a.C. e morreu em 347 a.C.

(8) Aristóteles nasceu em Estagira, na Calcídica (384 a.C. - 322 a.C.). Filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, é considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos e criador do pensamento lógico.

(9) Aletheia (ἀλήθεια). Significa des-encobrimento, segundo Heidegger. Uma forma simples, mas fundamental, de se expressar uma palavra complexa como esta palavra grega.

(10) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heráclito e a Aprendizagem do Pensamento. Revista de Filosofia Antiga - Kleos. Rio de Janeiro - IFCS - UFRJ: v.1, n.1, p.119, 1997.

(11) LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heráclito e a Aprendizagem do Pensamento. Revista de Filosofia Antiga - Kleos. Rio de Janeiro - IFCS - UFRJ: v.1, n.1, p.126, 1997.

Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. Alétheia (Heráclito, fragmento 16). In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes. 2000.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heidegger e a Modernidade: A Correlação de Sujeito e Objeto. In: Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heráclito e a Aprendizagem do Pensamento. Revista de Filosofia Antiga - Kleos. Rio de Janeiro - IFCS - UFRJ: v.1, n.1, p.113 – 142; 1997.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Uma leitura órfica de uma sentença grega. In: Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992.

Nenhum comentário:

Postar um comentário